sábado, 24 de agosto de 2013

Quando os Poetas Dialogam

DO BLOG "Navegações nas Fronteiras do Pensamento", de José de Sousa Miguel Lopes, em
http://navegacoesnasfronteirasdopensamento.blogspot.com.br/2013/08/quando-os-poetas-dialogam.html

«Esta postagem tem uma história. Num e-mail enviado à Cristina Vicente (1), amiga de longa data, coloquei, sem qualquer tipo de comentário, um poema do Manoel de Barros, um de meus poetas brasileiros preferidos. Estava longe de imaginar que a reação de minha amiga a este poema, fosse... um outro poema. “Ouçamos” primeiro o poema de Barros, mote que inspirou a digressão dialógica de Maria Machamba (2). É a partir desse poema, na inquietude da sua íntima condição, que a autora vai desvelando nos seus versos o silêncio desabitado, buscando uma condição de sujeito capaz de devanear, sonhar, produzir sentidos num sujeito ao qual, na fissura entre a realidade e a imaginação, só lhe resta o sussurro e a fuga.

José de Sousa Miguel Lopes



Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas
mais que a dos mísseis.
Tenho em mim
esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância
de ser feliz por isso.
Meu quintal
É maior do que o mundo.
Manoel de Barros

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Prezo amigos mais que insetos
Estórias mais que autores.
Os jardins, as árvores ainda mais que os livros. 
Passarinhos, gatos, cães 
Certamente mais que todos os insetos. 
Mas sim, tal como o Manoel de Barros 
Também eu prefiro os insetos aos aviões.
 
Sou feliz com a música
Mas não apenas, no meu quintal
Azeitonas, pão quentinho, chocolate, morangos, ameixas
Ai, que nem sei se não os prezo mais que à astronomia, pintura, política, biologia, medicina
Tal é a abundância de matéria, de saber.
 
Amo a terra, toco-a, planto-a
Congemino o seu germinar na magia das coisas.
E a brisa quente e suave mais que o vento.
Mais que isso, silêncio
Porque vou confidenciar, no meu jardim...
 
Prezo a vida, mais que a morte
A morte mais que a tortura.
O Homem, mais que a Deus.
E só prezo alguns 
A ti também.
 
O adeus não prezo.
Prefiro o até sempre
Que é uma forma mais consciente
De ir e ficar ao mesmo tempo.
O adeus ou até sempre, têm uma ordem, que só mora no meu pensamento.
 
Prezo os homens mais que as fronteiras.
O horizonte que às vezes é maior que a janela
Como o conto ultrapassa a escrita
Ou o pensamento
Mais veloz que os sentidos.
 
Prezo tantas coisas mais que insetos.
Mas porque não hão-de ser os gafanhotos, ainda que canhotos,
mais prezados que a vida ou a morte, ou que o conto?
Ou as abelhas, vá, que sustêm todo o equilíbrio do mundo
Em cada flor que se abre e fruto que se forma.
Se os livros nem conseguem saltar de esguelha
E as estórias não vão além da memória.
 
Só os insetos, por pura discricionariedade, hão-de valer menos que os poetas.
E mais que os aviões.
Maria Machamba


(1) Cristina Vicente, nascida em Moçambique em 1971 e descolonizada para Portugal ainda na tenra infância, filha e trineta de professores, neta de emigrantes machambeiros, lendo precocemente, evidenciou cedo a escrita poética. Advogada, consultora jurídica em funções públicas, entre outros desempenhos, a escrita, contida, transformou-se por longo tempo em ferramenta oficinal, laborando cuidadosamente para que não lhe coscuvilhasse a alma.
Maria Machamba é um pseudónimo nascido de um diálogo imaginário entre esta cidadã europeia do século XXI, ativa e cosmopolita, e um inteligente e bem humorado lente e mestiço de cultura, aspirante agriot. No momento em que o griot a convence a escutar a sua escrita, e embora desconfie não haver nela sons, fogo ou essência de imbonda, Maria Machamba nasce depois de ter estado morta.
Com vivências familiares marcadas por uma ligação distante, não obstante intensa e lúcida, a um continente desconhecido, a autora, partindo do afeto profundo por baobás e num regresso às suas origens africanas, marca agora o tempo intimista do reencontro de amizades improváveis e da escrita, para uma viagem extraordinária entre continentes, e sujeitos, pelo mundo da ciência, da música, das artes, ou qualquer outro campo fértil da vida.
(2) Machamba - Terreno agrícola para produção familiar em Moçambique.

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