quarta-feira, 27 de março de 2013

O caso de Chipre - opinião de Adriano Moreira

Jornal PÚBLICO de 27/03/2013


O pirata de Espronceda
por ADRIANO MOREIRA
A alarmante intervenção proposta para Chipre, uma ilha à qual o doloroso processo da independência e da partilha, quando a Carta da ONU oferecia já o mais pacífico dos presentes, e um futuro de paz e prosperidade, faz lembrar o poema de Espronceda sobre o Pirata que navegava anárquico e feliz pelo Mediterrâneo, livre de qualquer das limitações que embaraçam governantes ocupados com as tarefas dos Estados, e do alargamento do poder dos agentes.
Não tem sido fácil encontrar quem se assuma como responsável pela inesperada iniciativa do imposto sobre os depósitos privados, um silêncio proporcionado pelo recolhimento oferecido pela sala de reuniões do Eurogrupo, tendo apenas transpirado agora que "as negociações foram duras".
Provavelmente um exagero de protecção de imagem para uma reunião que teve a unanimidade dos votos, e conseguiu acrescentar mais um alarme às inquietações das populações da União. A política da União já provocou a fadiga fiscal dos contribuintes, que progressivamente colocam de lado a confiança nos princípios dessa União, para esperarem inquietos pela criatividade dos resguardados responsáveis, que parece terem decidido assumir a imaginativa liberdade cantada por Espronceda agora num Mediterrâneo que exige, por muitas e evidentes razões, que o bom senso europeu não emigre para paragens desconhecidas.
Sobretudo, é alarmante, entre os argumentos que circulam, para justificar a iniciativa que não tem pai certo, a afirmação de que a dimensão de Chipre, ilha partilhada, com pouco mais de um milhão de habitantes e um PIB de 17,8 milhões de euros, não oferecia outra hipótese ao resgate, quer no domínio dos impostos sobre o consumo quer no do corte das despesas, senão o da expropriação que o Parlamento do Estado recusou.
A convicção de que o projecto europeu é de unidade fica seguramente abalado, pelo menos nos países, e não são poucos, que, olhando à sua dimensão, ficam mais inquietos com o futuro, e com a validade da prudência que terá inspirado a decisão de aderir ao projecto.
Também é inquietante não ter ocorrido aos decisores, que envolvem de nebulosidade as responsabilidades partilhadas, que não é um argumento, é antes uma ameaça, declarar que o caso de Chipre é excepcional e não se repetirá em relação a qualquer outro membro da União, porque fica de pé o direito a usar a excepcionalidade.
Neste caso, os motivos do alarme dos cidadãos talvez resultem fundamentalmente da volumosa crónica de erros sobre as previsões, as prospectivas, e as promessas falhadas que povoam o trajecto da União, cada vez mais afastada dos textos legais e mais submissa a sinais de directório de lamentável memória.
Passar de credibilidade sem mácula pelos acidentes desta crónica é um milagre que nenhum responsável pode esperar. O facto é que o valor da confiança, nas lideranças que existem, nos textos legais, nos valores do projecto que sarava as feridas profundas das guerras civis do espaço europeu, está perigosamente abalada, sendo cada vez mais evidente que estão a ressuscitar, sem projecto, o limes romano, separando a Europa rica da Europa atingida pela pobreza.
A nova fronteira a norte do Mediterrâneo, mostra que o número de Estados e povos atingidos já é mais do que suficiente para exigir um comportamento de maior autenticidade na aplicação dos projectos e dos tratados em vigor, tornando evidente, para ambos os lados dessa fronteira, que o falhanço do regionalismo europeu trará consigo a perda da importância da voz europeia no mundo. Tendo ainda de lamentar-se a imprudência de não ter em conta a situação inquietante do próprio Mediterrâneo, e a área sensível onde está situado Chipre, para apenas se inquietarem com o facto de lhe ser imputada a facilidade com que protegem capitais estrangeiros, incluindo a lavagem de dinheiro, tudo coisas essas que a União deveria especificamente combater, porém sem limitar as suas decisões às finanças de apenas um Estado parceiro, para se preocupar com o facto de que em todos os Estados europeus, sem distinção de tamanho, existem pessoas, que constituem povos, que são parte da Europa em perda de conceito estratégico.

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