segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Luís Miguel Torgal - Era Uma Vez um País


POR LUÍS MIGUEL TORGAL

ERA UMA VEZ UM PAIS…
CARTA ABERTA AO DEPUTADO EMÍDIO GUERREIRO



Meu Caro Deputado Emídio Guerreiro

Não levará a mal, com certeza, que o trate de um modo mais informal, pois conheci-o como Presidente da Associação Académica de Coimbra nos anos 90, embora agora o saiba como representante da Nação, na qualidade de deputado do PSD.
No Diário de Coimbra, de 26 de Setembro, contou uma história simples de um país — Portugal, evidentemente —, talvez uma história demasiado simples. Normalmente a excessiva simplicidade ou, melhor, a ligeireza com que se encara o mundo, está relacionada com as facilidades que a vida nos concedeu. Se assim é, só tenho a felicitá-lo e a desejar-lhe um excelente futuro, tal como decerto tem sido o seu passado e o seu presente. É claro que o que nos apresentou no seu artigo é uma história, com todo o seu carácter simbólico, como são todas as histórias, mas mesmo assim valeria a pena pensar que as boas histórias são sempre muito mais complexas, assim como é a vida, que não é apenas a nossa mas também a dos outros.
O que nos diz, em poucas palavras é o seguinte:
Neste país o povo vivia mal e passou a viver bem, não só com auto-estradas, escolas lindas, telemóveis…, mas também — imagine (como diriam os nossos irmãos brasileiros) — ipods e ipads. Todavia, os “Senhores do Mundo” um dia verificaram que esse País vivera acima das suas possibilidades e, por isso, decidiram que não emprestavam mais dinheiro, pelo que o anterior Governo do país fora obrigado a assinar um “memorando”. Como o país mudou de Governo, agora “estes governantes viram-se confrontados com a necessidade de arranjar dinheiro”. Mas — “e aqui é que tudo se complica”, segundo afirma  — o país considerou que, embora devesse contribuir para pagar a dívida, ninguém queria assumir que cada um o devia fazer. Por isso — e temos finalmente explicada a razão das manifestações que têm ocorrido (desculpe a ironia) — “o povo veio para a rua protestar, alto e bom som, que não quer mais sacrifícios e que quer voltar ao nível de vida de antes”. Ou seja, pelo que percebo da sua narrativa, o povo quer voltar a ser “pobre e pouco desenvolvido”.
História deliciosa! Como cidadão deste país, vou apenas dizer-lhe duas palavras mais objectivas que, no entanto, muitos outros já lhe devem ter dito. Claro que o país de que fala teve um desenvolvimento desordenado e consumista devido não apenas aos empréstimos dos “Senhores do Mundo” (presumo que seja esta Europa comunitária e economicista, ou financista, e este Mundo capitalista e neoliberal), mas também aos vários governos deste país, particularmente interessados em colaborar com o “sistema”. Mas repare, Senhor Deputado, Meu Caro Emídio Guerreiro, desde 1985 o seu partido esteve no Governo sensivelmente tantos anos como esteve o chamado Partido Socialista, que infelizmente também não soube assumir a sua postura de Democracia Social por que deveria ter lutado e que, na verdade, depois de muitas trapalhadas, assinou o tal memorando pelo punho do engenheiro Sócrates, um dos culpados do estado a que isto chegou. No entanto, para que o Governo mudasse, quantas promessas fez o seu líder e os seus apoiantes?! Aconselho-o a voltar a ler os seus textos e a tornar a ouvir os seus discursos.
Do que o país está farto, afinal, é de uma classe política e de administração que nos governou ou desgovernou, que conseguiu benesses sem conta, não só na permissividade do público e do privado, como até nos lugares e nos altos vencimentos ganhos no domínio público por gestores que geriram bem o dinheiro das empresas e dos seus bolsos (basta olhar para os seus vencimentos milionários), e mesmo por jovens incompetentes e oportunistas que percorreram o cursus honorum da política em tempo relâmpago, sem saberem o que era verdadeiramente um ofício. Neste contexto, houve um apelo ao consumo, tolerado pelos governos. E com tudo isto e com a intervenção dos bancos, com as suas estratégias de enriquecimento fácil, surgiu a tal crise de que todos falamos, para que alguns nem podem contribuir — os mais pobres — e outros, muito ricos, não são chamados a fazê-lo, pelo menos de modo sensível.
Talvez isso explique melhor — numa história também simples — as manifestações de milhares de cidadãos. Muitos haverá que gritam por gritarem: em Coimbra ouvi um “socialista” integrado no “sistema” que dizia para outro: “agora é que nos dão razão…!”. No entanto, olhe em volta e o que vê? Desempregados que foram despedidos de empresas que entraram em insolvência (algumas aproveitando o momento) ou que tiveram mesmo de fechar porque não se olhou verdadeiramente para a economia estrutural do tal país, ou jovens que procuram um primeiro emprego há anos sem o conseguir. E também gente da classe média que se matou a trabalhar, que tinha uma vida simples mas boa (sem ipads, ipods e, já agora, iphones) e que hoje perdeu o seu poder de compra, reformados que pagaram o que lhes foi pedido durante largos anos e que agora sentem as suas pensões a baixarem, gente idosa que mal pode comprar os medicamentos para as suas doenças crónicas e, já agora, militantes de um idealismo político que lutaram pela democracia contra a ditadura e que sentem, mais do que ninguém, o oportunismo instalado no meio de uma democracia em crise sem precedentes. Simples exemplos…
Na verdade, dou nisso razão à sua história: esses não querem mais austeridade, provocada pelos Senhores do Mundo e pelos Senhores deste País.

Estou a escrever-lhe nas vésperas do 5 de Outubro, feriado que o governo PSD/CDS matou da forma mais ridícula, sem se lembrar do seu carácter simbólico de dia da comunidade (Res publica, “coisa pública”), assim como aboliu o 1.º de Dezembro, dia da Independência, num tempo em que nos sentimos cada vez menos “País”. Como muitos que conhecem a História, vejo que estamos num momento de grande crise económica, financeira, mas também política e cultural. Penso mesmo que esta crise é essencialmente cultural (em termos de cultura de cidadania), como se prova até pelo sua história tão singela, apesar de citar Camus, para dar uma nota intelectual ao seu discurso. Todos receamos novos sebastianismos e o surgir de novas ditaduras ou de alternativas radicais de esquerda ou de direita. Mas, não esqueçamos que o Mundo começa a estar em revolta constante, mesmo em Portugal. E todos sabemos onde isso pode ir dar.
Deixe então — como mero aviso — que termine recordando o texto de apresentação da revista Alma Nacional, por António José de Almeida, em 10 de Fevereiro de 1910. Explicando o desenho da capa da revista, da autoria do artista conimbricense António Augusto Gonçalves, alude assim a uma afirmação de Almeida Garrett, das Cartas de M. Scevola, de 1830:
“É certo. Os portugueses são assim, como diz Garrett: sofredores, pacientes, resignados. Mas, no meio da trágica resignação do seu sofrer, é visível a indómita rebeldia do seu carácter. São morosos na insurreição, mas, no momento supremo, quando a medida se enche, não há dique que se oponha ao extravasar da sua cólera.”

Cordiais saudações

Coimbra, 1 de Outubro de 2012


Luís Reis Torgal

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