domingo, 2 de junho de 2013

A "COISA"

COM A DEVIDA VÉNIA

Dissertação sobre a palavra "coisa" - Texto brasileiro enviado por Carlos Leça da Veiga








   A palavra "coisa" é um bombril do idioma. Tem   mil e uma utilidades. É aquele tipo de termo-muleta ao qual a gente recorre   sempre que nos faltam palavras para exprimir uma idéia. Coisas do português.

  A natureza das coisas: gramaticalmente, "coisa" pode ser   substantivo, adjetivo, advérbio. Também pode ser verbo: o Houaiss registra a forma "coisificar". E no Nordeste há "coisar": "Ô,   seu coisinha, você já coisou aquela coisa que eu mandei você coisar?".

  Coisar, em Portugal, equivale ao ato sexual, lembra Josué Machado. Já as "coisas"   nordestinas são sinônimas dos órgãos genitais, registra o Aurélio. "E   deixava-se possuir pelo amante, que lhe beijava os pés, as coisas, os   seios" (Riacho Doce, José Lins do Rego). Na Paraíba e em Pernambuco, "coisa" também é cigarro de maconha. Em Olinda, o bloco   carnavalesco Segura a Coisa tem um baseado como símbolo em seu estandarte.

  Alceu Valença canta: "Segura a coisa com muito cuidado / Que eu chego   já." E, como em Olinda sempre há bloco mirim equivalente ao de gente grande, há também o Segura a Coisinha.  

  Na literatura, a "coisa" é coisa antiga. Antiga, mas modernista:   Oswald de Andrade escreveu a crônica O Coisa em 1943. A Coisa é título de romance de Stephen King. Simone de Beauvoir escreveu A Força das Coisas, e   Michel Foucault, As Palavras e as Coisas.
 
  Em Minas Gerais, todas as coisas são chamadas de trem. Menos o trem, que lá é   chamado de "a coisa". A mãe está com a filha na estação, o trem se  aproxima e ela diz: "Minha filha, pega os trem que lá vem a   coisa!".

 Devido lugar 

 

  "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça (...)". A garota de
  Ipanema era coisa de fechar o Rio de Janeiro. "Mas se ela voltar, se ela
  voltar / Que coisa linda / Que coisa louca." Coisas de Jobim e de
  Vinicius, que sabiam das coisas. Sampa também tem dessas coisas (coisa de
  louco!), seja quando canta "Alguma coisa acontece no meu coração",
  de Caetano Veloso, ou quando vê o Show de Calouros, do Silvio Santos (que é
  coisa nossa).

 

  Coisa não tem sexo: pode ser masculino ou feminino. Coisa-ruim é o capeta.  Coisa boa é a Juliana Paes. Nunca vi coisa assim! Coisa de cinema! A Coisa   virou nome de filme de Hollywood, que tinha o seu Coisa no recente Quarteto   Fantástico. Extraído dos quadrinhos, na TV o personagem ganhou também desenho   animado, nos anos 70. E no programa Casseta e Planeta, Urgente!, Marcelo   Madureira faz o personagem "Coisinha de Jesus".

   Coisa também não tem tamanho. Na boca dos exagerados, "coisa   nenhuma" vira "coisíssima". Mas a "coisa" tem   história na MPB.

    No II Festival da Música Popular Brasileira, em 1966, estava na letra das   duas vencedoras: Disparada, de Geraldo Vandré ("Prepare seu coração / Pras coisas que eu vou contar"), e A Banda, de Chico Buarque ("Pra   ver a banda passar / Cantando coisas de amor"), que acabou de ser relançada num dos CD triplos do compositor, que a Som Livre remasterizou. Naquele ano   do festival, no entanto, a coisa tava preta (ou melhor, verde-oliva). E a   turma da Jovem Guarda não tava nem aí com as coisas: "Coisa linda / Coisa que eu adoro".

    Cheio das coisas
 

  As mesmas coisas, Coisa bonita, Coisas do coração, Coisas que não se esquece,   Diga-me coisas bonitas, Tem coisas que a gente não tira do coração. Todas essas coisas são títulos de canções interpretadas por Roberto Carlos, o   "rei" das coisas. Como ele, uma geração da MPB era preocupada com   as coisas. Para Maria Bethânia, o diminutivo de coisa é uma questão de   quantidade (afinal, "são tantas coisinhas miúdas"). Já para Beth   Carvalho, é de carinho e intensidade ("ô coisinha tão bonitinha do   pai"). Todas as Coisas e Eu é título de CD de Gal. "Esse papo já tá qualquer coisa... Já qualquer coisa doida dentro mexe." Essa coisa doida  é uma citação da música Qualquer Coisa, de Caetano, que canta também:
 
"Alguma coisa está fora da ordem."

    Por essas e por outras, é preciso colocar cada coisa no devido lugar. Uma   coisa de cada vez, é claro, pois uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra  coisa. E tal coisa, e coisa e tal. O cheio de coisas é o indivíduo chato,   pleno de não-me-toques. O cheio das coisas, por sua vez, é o sujeito estribado.

  Gente fina é outra coisa. Para o pobre, a coisa está sempre feia: o   salário-mínimo não dá pra coisa nenhuma.

    A coisa pública não funciona no Brasil. Desde os tempos de Cabral. Político   quando está na oposição é uma coisa, mas, quando assume o poder, a coisa muda   de figura. Quando se elege, o eleitor pensa: "Agora a coisa vai."

  Coisa nenhuma! A coisa fica na mesma. Uma coisa é falar; outra é fazer. Coisa   feia! O eleitor já está cheio dessas coisas!

    Coisa à toa

 
    Se você aceita qualquer coisa, logo se torna um coisa qualquer, um   coisa-à-toa. Numa crítica feroz a esse estado de coisas, no poema Eu, Etiqueta, Drummond radicaliza: "Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa,   coisamente." E, no verso do poeta, "coisa" vira "cousa".

    Se as pessoas foram feitas para ser amadas e as coisas, para ser usadas, por   que então nós amamos tanto as coisas e usamos tanto as pessoas? Bote uma   coisa na cabeça: as melhores coisas da vida não são coisas. Há coisas que o   dinheiro não compra: paz, saúde, alegria e outras cositas más.

    Mas, "deixemos de coisa, cuidemos da vida, senão chega a morte ou coisa   parecida", cantarola Fagner em Canteiros, baseado no poema Marcha, de   Cecília Meireles, uma coisa linda. Por isso, faça a coisa certa e não esqueça   o grande mandamento: "amarás a Deus sobre todas as coisas".

Entendeu o espírito da coisa?


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