domingo, 30 de dezembro de 2012

Tarcisio Lage, ex-Coordenador do Serviço Brasileiro da Radio Nederland
escreve sobre a história da Rádio em Onda Curta, com especial atenção à rádio internacional holandesa e ao fim das suas emissões.

http://archief.rnw.nl/portugues/article/coluna-holanda-reduz-sua-nave-na-tripula%C3%A7%C3%A3o-do-ciberespa%C3%A7o


Deixei a Radio Nederland há 10 anos, depois de ter trabalhado por 23 anos no Serviço Brasileiro. Vindo de experiências na BBC e na Radio Suíça Internacional, vivi o auge das ondas curtas, quando as frequências eram disputadas a tapa em Genebra e as rádios Moscou e Voz da América davam-se ao luxo de utilizar algumas delas só para produzir ruído e atrapalhar a recepção da concorrente.
Por Tarcísio Lage*
Nascidas na era colonial, aproveitadas por ambos os lados durante a Segunda Guerra, as ondas curtas foram uma arma das mais importantes no decorrer da guerra fria. Ainda davam as cartas quando ruiu o Muro de Berlim em 1989 e a União Soviética capengava para seu fim no início da nova década.
A Holanda, sabemos, foi um dos primeiros países a utilizar as ondas curtas, em 1927, em transmissão direcionada à Indonésia. A primeira transmissão transoceânica é atribuída à emissora estadunidense KDKA, de Nova Iorque para Londres, em 1923.
Hoje, enquanto escrevo este artigo, tenho ao meu lado um smartphone com o qual posso ouvir, em som nítido e claro, emissoras de rádio emitindo de quase qualquer parte do planeta. E até mesmo sintonizar alguns canais de televisão.
Definitivamente, as ondas curtas, que contribuíram muito para a crescente globalização, acabaram atropeladas pelas novas tecnologias. Mesmo assim, muitos países ainda guardam suas frequências, como reserva, em caso de guerra ou catástrofe, que possa destruir as redes de satélites e os cabos submarinos. Mas isso é outra história. Cruzamos os dedos para que não aconteça.
Rádio como instrumento de propagandaO que podemos perguntar é se esse evidente ocaso das ondas curtas e o advento da internet têm a ver com o brusco corte das transmissões da Radio Nederland, com o encerramento de serviços como o Holandês e o Brasileiro. Entendo que a resposta é não.
O corte dos serviços da Radio Nederland foi uma decisão política errada devido à incapacidade de enxergar os benefícios de estar na linha de frente na batalha que se trava no ciberespaço.
Sabemos muito bem da existência de um refrigerante de cor escura, comprovadamente prejudicial à saúde, mas que é campeão de venda em todo o mundo porque está sempre utilizando todos os meios de divulgação disponíveis. Vale aqui o velho refrão: a propaganda é a alma do negócio.
Serve também para países. A Holanda está, simplesmente, abrindo mão de um valioso instrumento de propaganda, de marcar presença no mundo inteiro, utilizando profissionais competentes para falar a linguagem certa entendida em cada região do mundo.
A BBC, a Rádio França e a Deutsche Welle estão fazendo isso. Souberam imigrar do chiado das ondas curtas para a selva da blogosfera sem perder de vista o objetivo principal: disputar o mercado da informação e sempre que possível puxando a sardinha para seu lado, quer dizer, marcando a presença de seus países no cenário internacional.
Discurso camuflado
A meu ver, o discurso oficial da Radio Nederland nunca foi realista, camuflando seus reais objetivos. Agora, por exemplo, o Departamento Latino Americano vai ser reduzido a escrever e divulgar informações para salvar Cuba e Venezuela de governos considerados tirânicos.
A Holanda posando de bom samaritano, enquanto a Grã-Bretanha, a França e a Alemanha preferem reforçar presença em países como o Brasil e tirar proveito do boom econômico por que estão passando. O golpe quase de morte contra a Radio Nederland foi dado por um governo que era influenciado pelo PVV, partido da ultradireita isolacionista de Geert Wilders, sem levar em conta os benefícios econômicos e políticos ao manter ativa a emissora.
Primeira reorganização
No entanto, o processo de não adaptação da Radio Nederland aos novos tempos começou em 1994, durante a primeira reorganização, quando a internet ensaiava seus primeiros passos. Para se livrar de alguns problemas administrativos e economizar, foram cortados vários serviços, incluindo o brasileiro, que só voltou a funcionar dois anos mais tarde.
O erro maior foi ter cortado, na época, o Serviço Árabe, com o potencial de atingir 400 milhões de pessoas e na região que era – e é – o foco de atenções do mundo inteiro. Do mesmo modo que sucedeu nas reorganizações posteriores, faltou sempre exprimir, sem subterfúgios o objetivo principal da emissora: fazer propaganda da Holanda, de seu potencial econômico. O resto – mesmo expresso com belas palavras – é complemento.
Rádio Canadá: pior exemplo
Isso pode parecer simplista, mas é uma tarefa muito difícil em que a BBC é mestra e a Radio Canadá, se me permite, foi o pior exemplo que vi. Em 1986 trabalhei durante dois meses em Montreal num intercâmbio entre a Radio Nederland e a Radio Canadá. E lá fiquei estarrecido em saber que só podiam ser divulgadas notícias que tivessem uma relação direta com o Canadá e, mais chocante ainda, as músicas utilizadas tinham de ser canadenses ou, pelo menos, oriundas de discos prensados no país.
Na época, às sextas-feiras, fazia um resumo da semana que era transmitido sábado pela manhã. Foi na noite de uma dessas sextas-feiras que assassinaram na Suécia o primeiro ministro Olof Palme. Não tive dúvidas. Fui pela manhã à emissora e com muito custo consegui mudar o programa. Na segunda-feira fui criticado pelos colegas e a chefia: afinal Olof Palme não tinha nada a ver com o Canadá.
Em contrapartida, no início dos anos 70 do século passado, trabalhei como redator na BBC. Os ingleses não tinham nada de canadenses e não eram nada ingênuos. O programa diário era, se não me falha a memória, de 2h15m, iniciando e terminando com um noticiário e um comentário. Aí era sagrado: não se podia mover uma vírgula, tradução ao pé da letra e nem sequer mudar a ordem das notícias. No meio do programa – e isso era nada menos de uma hora e meia – podíamos falar praticamente o que bem quiséssemos. E a BBC passava – como passa ainda hoje – por uma emissora onde se pode dizer tudo, mas sem deixar de impor, diariamente, sua opinião.
Radio Nederland: paraíso de liberdade
Na Radio Nederland – depois de ter passado pela rigidez da Radio Suíça Internacional – encontrei um ambiente muito parecido com o da BBC. Com uma vantagem para nós jornalistas: podíamos escolher o noticiário e os comentários. Um paraíso de liberdade editorial.
Quando cheguei, no final de 1981, não se utilizavam nem roteiros. Íamos para o estúdio com um colega ou um convidado para conversar, até o técnico dar o sinal de que o tempo havia esgotado. Apesar de tender para o lado libertário, batalhei para que fosse introduzido o roteiro a fim de aproveitar melhor o curto espaço de 10 ou 15 minutos de cada programa.
O que interessa ressaltar é que a Radio Nederland – pelo menos no que se refere ao Serviço Brasileiro – gozava de extrema liberdade e fazia concorrência com a BBC na disputa de ouvintes de ondas curtas. E mesmo assim, nesse fausto libertário, não deixava de servir muito bem aos interesses econômicos da Holanda.
A era da internet
Nessa derrocada, em que o Serviço Brasileiro desaparece, vale recordar alguns erros cometidos na era pré-internet. Quando o Departamento foi reaberto, em 1996, sabendo-se que as ondas curtas estavam irremediavelmente condenadas, a RNW embarcou numa concorrência desigual com a BBC para conquistar direito de retransmissão pelas grandes emissoras brasileiras.
Chegou a instalar uma enorme e custosa antena na Rádio Ministério da Educação e outra para a rede de rádios católicas, enquanto a BBC ia abocanhando com exclusividade as emissoras de grande porte.
Foi aí – quando a internet começa a demonstrar ser ridículo gastar tanto dinheiro com antenas gigantescas – que o Serviço Brasileiro deixou de aproveitar sua melhor oportunidade de sobrevivência. Ao lado das rádios oficiais, controladas pela Embratel, o Brasil possuía mais de cinco mil rádios comunitárias, ávidas de preencher suas programações diárias.
Por medo de perder o mercado das rádios oficiais, já na época dominado sobretudo pela BBC, o Serviço Brasileiro deixou de lado o filão das rádios comunitárias. Não faço autocrítica porque na época fui contra tal abandono.
E aqui chegamos. O Serviço Brasileiro está fechando suas portas. A Radio Nederland, como um todo, sendo reduzida a um núcleo com menos de um quarto de seus funcionários. A emissora que foi tão bem na nau das ondas curtas perdeu a nave para a batalha no ciberespaço.
* Tarcisio Lage, ex-Coordenador do Serviço Brasileiro da Radio Nederland

Em 1973, a Rádio Nederland publicou uma vinheta, que pode ser vista em
https://plus.google.com/u/0/photos/106129430592961017104/albums/5377356265775162657/5377357549544597314

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